segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Culturas e sementes de variedades mil na I Feira Mebengokré


Encontro inédito na Terra Indígena Kayapó reúne 16 etnias do Brasil e discute estratégias para o fortalecimento dos povos tradicionais. Foto: Nathália Clark

São Félix do Xingu, 14 de setembro de 2012 – Para os parentes mais próximos, mais de oito horas de estrada da cidade até a aldeia. Para outros, mais de três dias de viagem. Mesmo assim, o cansaço não impediu o andamento e o sucesso da I Feira Mebengokré (Kayapó) de Sementes Tradicionais, realizada entre os dias 3 e 7 de setembro na aldeia Moikarakô, na Terra Indígena Kayapó, município de São Félix do Xingu (PA).
Apesar da distância, mais de mil indígenas de 16 povos do Brasil estiveram presentes neste grande intercâmbio cultural. Eles levaram consigo suas sementes, artesanatos, saberes e experiências. Além das lideranças, também participaram representantes do governo e de organizações da sociedade civil num encontro inédito para a valorização e fortalecimento da cultura e dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas.
“Essa primeira feira Kayapó foi grandiosa, já é um marco nas feiras de sementes indígenas”, disse a pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, Terezinha Dias. Segundo ela, o volume e a diversidade de sementes presente na Feira foi enorme. “Apareceram variedades genéticas e sementes tradicionais muito raras, quase escassas em alguns locais, como alguns tipos de favas e milhos. Os indígenas que tiveram a oportunidade de participar estão voltando satisfeitos e um pouco mais ricos para suas aldeias. Eles vão reintroduzir esses materiais, diversificando ainda mais suas lavouras.”
Indígenas Mebengokré, Kawaiwete (Kaiabi), Krahô, Apinajé, Canela, Karajá, Kisẽdjê (Suyá), Huni Kuĩ (Kaxinawá), Wajãpi, Galibi, Karipuna, Parakanã, Xikrin, Xavante, Xucuru e Tapayuna puderam expor e trocar sementes de variedades tradicionais de milho, melancia, algodão, cajú, castanha, fava, feijão, mandioca, cana e muitos outros cultivares tradicionais. “Eles trocam pouco, três ou quatro sementinhas, mas já dá para ver o brilho nos olhos de ter esse material, que um dia existiu em suas terras e foi perdido, de volta”, diz Terezinha.
Para a pesquisadora, a importância da I Feira Mebengokré, um evento do qual participaram muitas etnias distintas, é a promoção desse método de conservação local, que está se multiplicando no Brasil. “É um momento em que os indígenas se encontram para trocar seus materiais genéticos e conversar sobre a importância de não perder a riqueza dessas sementes relacionadas aos rituais, e a valorizar os agricultores que guardam essas sementes dentro das comunidades, aqueles que são os verdadeiros guardiões da agrobiodiversidade.”
Esse processo de conservação local da biodiversidade serve de contraponto a tudo o que vem acontecendo do lado de fora e muitas vezes também dentro das Terras Indígenas. Enquanto a agricultura voltada para o agronegócio reduz a diversidade genética, ao privilegiar o cultivo extensivo de poucas espécies, nas roças dos agricultores familiares indígenas a lógica é a diversificação. “São os verdadeiros bancos genéticos nacionais”, afirma Terezinha.
Para uma das maiores lideranças femininas do povo Kayapó, a nire (mulher) Tuire, o objetivo de fortalecer a cultura foi alcançado. “Estamos aqui trocando sementes, mas ao mesmo tempo nossa cultura está se fortalecendo, temos essa preocupação de que nossos costumes não venham a acabar, então estamos aqui presentes com objetivo de mostrar nossa cultura para as crianças, para que a juventude possa aprender, para que nossa gente, nosso povo seja mantido e preservado. Eu estarei sempre lutando por isso”, disse Tuire.
Os indígenas convidados também saíram bastante satisfeitos com a troca de culturas e a oportunidade de expôr seus conhecimentos tradicionais. Odacir Krahô veio da aldeia Pé de Coco, no Tocantins, e afirmou que seu povo volta para casa fortalecido. “Estão deixando muitos usos tradicionais da nossa cultura para trás. Essa Feira foi muito importante, pois, com tantas etnias juntas, trabalhamos juntos para retomar atividades e produtos antes perdidos.”
Construindo e cultivando parcerias
O Instituto Socioambiental (ISA), um dos parceiros da Associação Floresta Protegida (AFP) na realização da Feira, esteve presente e atuante nos debates, com objetivo, entre outros, de estender a rede de sementes já existente na região do Xingu, também ao povo Kayapó.
“Nós do ISA avaliamos o evento como bastante positivo, sobretudo destacando a capacidade dos Kayapó, da AFP e dos parceiros, de mobilizar não só o povo Kayapó, mas tantas etnias juntas. Promover esse encontro de diferentes culturas num só espaço já é um mérito por si só. É sempre importante ter um espaço para que esse diálogo ocorra, pois ele é raro, em função mesmo desse não encontro. Foi possível construir boas discussões”, disse Rodrigo Junqueira.
Como organização parceira que lidera o processo da rede de sementes com os indígenas do Xingu, o representante do ISA afirmou ter sido muito construtivo ver o grande interesse dos Kayapó, da Funai e da própria AFP em criar um movimento e articulação similar na região. “Houve bastante interesse em dar continuidade ao processo de criação da rede de sementes. O objetivo é valoriza ainda mais a floresta e retomar sementes esquecidas ou perdidas, além de ser uma fonte concreta e real de geração de renda para as populações indígenas.”
Os parceiros governamentais também participaram das discussões promovidas na Feira. Com o objetivo de traçar estratégias para que o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), possa atingir um maior número de beneficiários, marcou presença no evento a representante da Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional do Departamento de Comercialização e Aquisição de alimentos do MDS, Maria do Socorro Oliveira.
“O convite foi muito bem-vindo, pois é uma oportunidade de vivenciar com os indígenas a sua rotina de produção. Apoiamos a proposta da AFP ao PAA, a partir do qual dez indígenas entregaram a alimentação durante todo o evento, e queremos poder continuar apoiando iniciativas semelhantes. Essa parceria é extremamente importante para o governo, pois, ao comprar o alimento trazido pelo próprio indígena, reduzimos os custos de comercialização de fora. E também é importante para a comunidade, pois uma família produz e muitas outras consomem.”
Os indígenas Kayapó venderam ao MDS produtos como farinha, peixe, batata-doce, inhame e macaxeira, os quais foram doados para a Feira de Sementes e preparados durante o evento para a alimentação dos convidados.
“Temos hoje 180 indígenas Kayapó do sul do Pará que possuem a declaração de aptidão ao Pronaf [a DAP], uma credencial que diz quem pode participar do PAA. Com isso vamos fortalecer quem produz, garantir que os produtores tenham sua comercialização, e também, na ponta final, o consumo desse alimento produzido.”
Paralelamente, foram doadas 300 cestas básicas para a alimentação dos participantes indígenas da Feira, que vieram complementar os alimentos oriundos do extrativismo e das roças dos Kayapó , não só de Moikarakô, mas também de outras aldeias.
Da parte do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que também vem atuando na Terra Indígena Kayapó, através de um projeto de assistência técnica e extensão rural (ATER), a Feira foi importante para solidificar a parceria já firmada e traçar caminhos para dar continuidade aos projetos em andamento.
“Nós atuamos junto ao povo Mebengokré com o objetivo de qualificar o conhecimento sobre o acesso às políticas públicas, com melhoramento da produção agrícola, transmissão de tecnologia, etc. De modo geral, eles querem uma continuidade das ações de ATER. As lideranças foram muito enfáticas quanto a isso: não faz sentido eles terem se esforçado para adquirir os conhecimentos se não têm como dar continuidade a isso”, afirmou Luiz Fernando Machado, coordenador do Núcleo de Assistência Técnica e Extensão Rural para Povos Indígenas do MDA.
“Como indigenista, servidor público e coordenador do núcleo, eu me comprometo com a população Kayapó a buscar apoio e fazer com que esse projeto de ATER seja mesmo um êxito. Vou me esforçar para convencer meus diretores da necessidade de estarmos mais atuantes não só dentro da Terra Indígena Kayapó, mas sobretudo aqui em Moikarakô, onde já atuamos e não podemos atrapalhar o andamento do projeto.”
Da parte da Funai (Fundação Nacional do Índio), Odenildo Coelho da Silva, coordenador da sede regional de Tucumã, afirmou que a Feira foi um evento de suma importância no aspecto cultural e para a integração entre os povos. “Qualquer ação que busque melhorias para os indígenas é válida, mas a Feira realmente superou expectativas. Muita gente compareceu, de vários povos distintos, e foi bonito ver essa interação, todos juntos reclamando seus direitos. As sementes fazem parte da cultura desses povos e a troca de experiências enriquece ainda mais. Com certeza queremos ampliar esse tipo de iniciativa, sempre tentando aperfeiçoar.”
Carta conjunta de repúdio
Durante as mesas redondas que aconteceram na Feira, as discussões levantaram assuntos de interesse direto dos povos indígenas, como saúde,  estratégias de fortalecimento da agricultura local e retrocessos na legislação referente a seus direitos, que impactam diretamente suas terras, seus modos de vida tradicionais e, consequentemente, a própria conservação local da diversidade biológica.
Como encaminhamento do encontro, foi elaborada uma carta  com participação e aprovação de todas as lideranças e povos presentes. O documento é direcionado à sociedade civil e a diversos órgãos do governo. Nele, caciques, pajés e lideranças manifestam publicamente seu repúdio ao Governo Federal pelos retrocessos sistemáticos relacionados aos direitos indígenas, e fazem uma série de exigências, como a revogação da Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU), que fere preceitos estabelecidos na Constituição Federal, como a consulta aos povos indígenas no caso de empreendimentos que impactem diretamente suas terras e suas populações.
Além disso, eles pedem também que tenham tratamento digno de saúde nas aldeias e nas cidades, e que sejam ouvidos e consultados em qualquer processo que altera as leis referentes a suas terras e seus direitos, diferente do que foi feito na PEC 215 e na alteração do Código Florestal proposta e aprovada pelo Congresso Nacional.
“Nessa grande reunião, a Feira de Sementes realizada na minha aldeia Moikarakô, conseguimos juntar muitas etnias e lideranças. Eu fico muito feliz quando conseguimos juntar muitas forças para ajudar e defender nossos direitos e costumes. Os senadores, deputados e a presidente estão passando por cima dos nossos direitos. Essa portaria da AGU é muito ruim para todos nós, está ameaçando a nós, índios, e à Amazônia. Isso não pode acontecer, senão o Brasil não vai conseguir mais respirar. Esse carbono que estamos defendendo é para segurar o pulmão do Brasil”, frisou o cacique Akjabôrô, líder da nação Kayapó.
Ele questiona o motivo pelo qual os governantes não respeitam mais as leis nacionais. “Por que a lei no Brasil não vale mais nada? Os políticos do Congresso estão fazendo isso como ladrões, como bandidos. Mas eles têm que verificar isso, pois todos eles têm netos. Se o Brasil acabar, os netos dos deputados, senadores, todos vão morrer. Todo mundo vai acabar. Essa é uma preocupação muito grande que eu tenho. Como sou líder da nação Kayapó, vou lutar, não vou abaixar a cabeça e cruzar os braços, vou lutar até conseguir. Se a portaria permanecer, o significado disso é que está começando a guerra.”
A Carta Aberta de Moikarakô foi entregue nesta quarta-feira (12), em Brasília, à sub-procuradora geral da República, Deborah Duprat, ao Secretário Especial de Saúde Indígena, Antônio Alves, e à  Fundação Nacional do Índio (Funai), que protocolou o documento e se comprometeu a repassar aos demais ministérios, ao Congresso Nacional e à Presidência da República.
Apoio
A realização da I FEIRA MEBENGOKRÉ DE SEMENTES TRADICIONAIS contou com o apoio da USAID (agência de ajuda humanitária do governo Norte-americano), da Vale, Funai, MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), MDS (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome), MMA (Ministério do Meio Ambiente), TNC (The Nature Conservancy), da Prefeiruta Municipal de São Félix do Xingu, da Secretaria de Meio Ambiente do Pará (SEMA-PA), do ICFC (Fundo Internacional de Conservação do Canadá).

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