Encontro inédito na Terra Indígena Kayapó reúne 16 etnias do Brasil e discute estratégias para o fortalecimento dos povos tradicionais. Foto: Nathália Clark |
São Félix do Xingu, 14 de setembro de 2012 – Para os parentes mais
próximos, mais de oito horas de estrada da cidade até a aldeia. Para outros,
mais de três dias de viagem. Mesmo assim, o cansaço não impediu o andamento e o
sucesso da I Feira Mebengokré (Kayapó) de Sementes Tradicionais, realizada
entre os dias 3 e 7 de setembro na aldeia Moikarakô, na Terra Indígena Kayapó,
município de São Félix do Xingu (PA).
Apesar da distância, mais de mil
indígenas de 16 povos do Brasil estiveram presentes neste grande intercâmbio
cultural. Eles levaram consigo suas sementes, artesanatos, saberes e experiências.
Além das lideranças, também participaram representantes do governo e de
organizações da sociedade civil num encontro inédito para a valorização e
fortalecimento da cultura e dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas.
“Essa primeira feira Kayapó foi
grandiosa, já é um marco nas feiras de sementes indígenas”, disse a
pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, Terezinha Dias.
Segundo ela, o volume e a diversidade de sementes presente na Feira foi enorme.
“Apareceram variedades genéticas e sementes tradicionais muito raras, quase
escassas em alguns locais, como alguns tipos de favas e milhos. Os indígenas que
tiveram a oportunidade de participar estão voltando satisfeitos e um pouco mais
ricos para suas aldeias. Eles vão reintroduzir esses materiais, diversificando
ainda mais suas lavouras.”
Indígenas Mebengokré, Kawaiwete
(Kaiabi), Krahô, Apinajé, Canela, Karajá, Kisẽdjê (Suyá), Huni Kuĩ
(Kaxinawá), Wajãpi, Galibi, Karipuna, Parakanã, Xikrin, Xavante, Xucuru
e Tapayuna puderam expor e trocar sementes de variedades tradicionais de milho,
melancia, algodão, cajú, castanha, fava, feijão, mandioca, cana e muitos outros
cultivares tradicionais. “Eles trocam pouco, três ou quatro sementinhas, mas já
dá para ver o brilho nos olhos de ter esse material, que um dia existiu em suas
terras e foi perdido, de volta”, diz Terezinha.
Para a pesquisadora, a
importância da I Feira Mebengokré, um evento do qual participaram muitas etnias
distintas, é a promoção desse método de conservação local, que está se
multiplicando no Brasil. “É um momento em que os indígenas se encontram para
trocar seus materiais genéticos e conversar sobre a importância de não perder a
riqueza dessas sementes relacionadas aos rituais, e a valorizar os agricultores
que guardam essas sementes dentro das comunidades, aqueles que são os verdadeiros
guardiões da agrobiodiversidade.”
Esse processo de conservação local
da biodiversidade serve de contraponto a tudo o que vem acontecendo do lado de fora
e muitas vezes também dentro das Terras Indígenas. Enquanto a agricultura
voltada para o agronegócio reduz a diversidade genética, ao privilegiar o
cultivo extensivo de poucas espécies, nas roças dos agricultores familiares indígenas
a lógica é a diversificação. “São os verdadeiros bancos genéticos nacionais”,
afirma Terezinha.
Para uma das maiores lideranças
femininas do povo Kayapó, a nire (mulher)
Tuire, o objetivo de fortalecer a cultura foi alcançado. “Estamos aqui trocando
sementes, mas ao mesmo tempo nossa cultura está se fortalecendo, temos essa
preocupação de que nossos costumes não venham a acabar, então estamos aqui
presentes com objetivo de mostrar nossa cultura para as crianças, para que a
juventude possa aprender, para que nossa gente, nosso povo seja mantido e
preservado. Eu estarei sempre lutando por isso”, disse Tuire.
Os indígenas convidados também
saíram bastante satisfeitos com a troca de culturas e a oportunidade de expôr
seus conhecimentos tradicionais. Odacir Krahô veio da aldeia Pé de Coco, no
Tocantins, e afirmou que seu povo volta para casa fortalecido. “Estão deixando
muitos usos tradicionais da nossa cultura para trás. Essa Feira foi muito
importante, pois, com tantas etnias juntas, trabalhamos juntos para retomar
atividades e produtos antes perdidos.”
Construindo e cultivando parcerias
O Instituto Socioambiental
(ISA), um dos parceiros da Associação Floresta Protegida (AFP) na realização da
Feira, esteve presente e atuante nos debates, com objetivo, entre outros, de
estender a rede de sementes já existente na região do Xingu, também ao povo
Kayapó.
“Nós do ISA avaliamos o evento
como bastante positivo, sobretudo destacando a capacidade dos Kayapó, da AFP e
dos parceiros, de mobilizar não só o povo Kayapó, mas tantas etnias juntas.
Promover esse encontro de diferentes culturas num só espaço já é um mérito por
si só. É sempre importante ter um espaço para que esse diálogo ocorra, pois ele
é raro, em função mesmo desse não encontro. Foi possível construir boas
discussões”, disse Rodrigo Junqueira.
Como organização parceira que
lidera o processo da rede de sementes com os indígenas do Xingu, o
representante do ISA afirmou ter sido muito construtivo ver o grande interesse
dos Kayapó, da Funai e da própria AFP em criar um movimento e articulação
similar na região. “Houve bastante interesse em dar continuidade ao processo de
criação da rede de sementes. O objetivo é valoriza ainda mais a floresta e
retomar sementes esquecidas ou perdidas, além de ser uma fonte concreta e real
de geração de renda para as populações indígenas.”
Os parceiros governamentais
também participaram das discussões promovidas na Feira. Com o objetivo de
traçar estratégias para que o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), possa atingir um
maior número de beneficiários, marcou presença no evento a representante da Secretaria
de Segurança Alimentar e Nutricional do Departamento de Comercialização e Aquisição
de alimentos do MDS, Maria do Socorro Oliveira.
“O convite foi muito
bem-vindo, pois é uma oportunidade de vivenciar com os indígenas a sua rotina
de produção. Apoiamos a proposta da AFP ao PAA, a partir do qual dez indígenas
entregaram a alimentação durante todo o evento, e queremos poder continuar
apoiando iniciativas semelhantes. Essa parceria é extremamente importante para o
governo, pois, ao comprar o alimento trazido pelo próprio indígena, reduzimos
os custos de comercialização de fora. E também é importante para a comunidade,
pois uma família produz e muitas outras consomem.”
Os indígenas Kayapó venderam ao
MDS produtos como farinha, peixe, batata-doce, inhame e macaxeira, os quais foram
doados para a Feira de Sementes e preparados durante o evento para a
alimentação dos convidados.
“Temos hoje 180 indígenas Kayapó
do sul do Pará que possuem a declaração de aptidão ao Pronaf [a DAP], uma
credencial que diz quem pode participar do PAA. Com isso vamos fortalecer quem
produz, garantir que os produtores tenham sua comercialização, e também, na
ponta final, o consumo desse alimento produzido.”
Paralelamente, foram doadas 300
cestas básicas para a alimentação dos participantes indígenas da Feira, que
vieram complementar os alimentos oriundos do extrativismo e das roças dos Kayapó
, não só de Moikarakô, mas também de outras aldeias.
Da parte do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA), que também vem atuando na Terra Indígena Kayapó,
através de um projeto de assistência técnica e extensão rural (ATER), a Feira
foi importante para solidificar a parceria já firmada e traçar caminhos para
dar continuidade aos projetos em andamento.
“Nós atuamos junto ao povo
Mebengokré com o objetivo de qualificar o conhecimento sobre o acesso às
políticas públicas, com melhoramento da produção agrícola, transmissão de
tecnologia, etc. De modo geral, eles querem uma continuidade das ações de ATER.
As lideranças foram muito enfáticas quanto a isso: não faz sentido eles terem
se esforçado para adquirir os conhecimentos se não têm como dar continuidade a
isso”, afirmou Luiz Fernando Machado, coordenador do Núcleo de Assistência
Técnica e Extensão Rural para Povos Indígenas do MDA.
“Como indigenista, servidor
público e coordenador do núcleo, eu me comprometo com a população Kayapó a
buscar apoio e fazer com que esse projeto de ATER seja mesmo um êxito. Vou me
esforçar para convencer meus diretores da necessidade de estarmos mais atuantes
não só dentro da Terra Indígena Kayapó, mas sobretudo aqui em Moikarakô, onde
já atuamos e não podemos atrapalhar o andamento do projeto.”
Da parte da Funai (Fundação
Nacional do Índio), Odenildo Coelho da Silva, coordenador da
sede regional de Tucumã, afirmou que a Feira foi um evento de suma importância
no aspecto cultural e para a integração entre os povos. “Qualquer ação que
busque melhorias para os indígenas é válida, mas a Feira realmente superou expectativas.
Muita gente compareceu, de vários povos distintos, e foi bonito ver essa
interação, todos juntos reclamando seus direitos. As sementes fazem parte da
cultura desses povos e a troca de experiências enriquece ainda mais. Com
certeza queremos ampliar esse tipo de iniciativa, sempre tentando aperfeiçoar.”
Carta conjunta de repúdio
Durante as mesas redondas que
aconteceram na Feira, as discussões levantaram assuntos de interesse direto dos
povos indígenas, como saúde, estratégias
de fortalecimento da agricultura local e retrocessos na legislação referente a
seus direitos, que impactam diretamente suas terras, seus modos de vida
tradicionais e, consequentemente, a própria conservação local da diversidade
biológica.
Como encaminhamento do encontro,
foi elaborada uma carta com participação
e aprovação de todas as lideranças e povos presentes. O documento é direcionado
à sociedade civil e a diversos órgãos do governo. Nele, caciques, pajés e
lideranças manifestam publicamente seu repúdio ao Governo Federal pelos
retrocessos sistemáticos relacionados aos direitos indígenas, e fazem uma série
de exigências, como a revogação da Portaria 303 da Advocacia Geral da União
(AGU), que fere preceitos estabelecidos na Constituição Federal, como a
consulta aos povos indígenas no caso de empreendimentos que impactem diretamente
suas terras e suas populações.
Além disso, eles pedem também
que tenham tratamento digno de saúde nas aldeias e nas cidades, e que sejam
ouvidos e consultados em qualquer processo que altera as leis referentes a suas
terras e seus direitos, diferente do que foi feito na PEC 215 e na alteração do
Código Florestal proposta e aprovada pelo Congresso Nacional.
“Nessa grande reunião, a Feira
de Sementes realizada na minha aldeia Moikarakô, conseguimos juntar muitas
etnias e lideranças. Eu fico muito feliz quando conseguimos juntar muitas
forças para ajudar e defender nossos direitos e costumes. Os senadores,
deputados e a presidente estão passando por cima dos nossos direitos. Essa
portaria da AGU é muito ruim para todos nós, está ameaçando a nós, índios, e à
Amazônia. Isso não pode acontecer, senão o Brasil não vai conseguir mais
respirar. Esse carbono que estamos defendendo é para segurar o pulmão do Brasil”,
frisou o cacique Akjabôrô, líder da nação Kayapó.
Ele questiona o motivo pelo qual
os governantes não respeitam mais as leis nacionais. “Por que a lei no Brasil
não vale mais nada? Os políticos do Congresso estão fazendo isso como ladrões,
como bandidos. Mas eles têm que verificar isso, pois todos eles têm netos. Se o
Brasil acabar, os netos dos deputados, senadores, todos vão morrer. Todo mundo
vai acabar. Essa é uma preocupação muito grande que eu tenho. Como sou líder da
nação Kayapó, vou lutar, não vou abaixar a cabeça e cruzar os braços, vou lutar
até conseguir. Se a portaria permanecer, o significado disso é que está
começando a guerra.”
A Carta Aberta de Moikarakô foi
entregue nesta quarta-feira (12), em Brasília, à sub-procuradora geral da
República, Deborah Duprat, ao Secretário Especial de Saúde Indígena, Antônio
Alves, e à Fundação Nacional do Índio
(Funai), que protocolou o documento e se comprometeu a repassar aos demais
ministérios, ao Congresso Nacional e à Presidência da República.
Apoio
A realização da I FEIRA MEBENGOKRÉ DE SEMENTES TRADICIONAIS contou com o
apoio da USAID (agência de ajuda humanitária do governo Norte-americano), da Vale,
Funai, MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), MDS (Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome), MMA (Ministério do Meio Ambiente),
TNC (The Nature Conservancy), da Prefeiruta Municipal de São Félix do Xingu, da
Secretaria de Meio Ambiente do Pará (SEMA-PA), do ICFC (Fundo Internacional de
Conservação do Canadá).
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