Foto: Simone Giovine/AFP |
“As
sementes tradicionais são frutos de um cuidadoso trabalho de observação,
seleção, cruzamentos, de práticas tradicionais, de trocas ancestrais”, explica
Flavia Londres, da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia). “São materiais
altamente adaptados às condições específicas de cada região, desenvolvidos há
mais de 10 mil anos em um trabalho realizado principalmente pelas mulheres, que
perceberam sua importância e os adaptaram às condições do campo”. Flavia relata
que além dessas sementes terem sido melhoradas ao longo do tempo, elas são de
livre circulação, não têm dono, podem ser trocadas à vontade entre diferentes
povos.
É
o contrário do que acontece com as sementes desenvolvidas nos centros de
pesquisa públicos e privados, que começaram a ganhar muita importância e
recursos a partir da segunda metade do século 20, no contexto que ficou
conhecido como Revolução Verde, que visava produzir alimento em grande
quantidade e tinha como mote o fim da fome no mundo. “O problema é que essa
semente melhorada vinha com um pacote para funcionar. Ela só podia ser
produzida nas chamadas ‘condições ótimas’”, conta Flavia. Por isso, foi preciso
artificializar. Ou seja, investir no desenvolvimento de sistemas de irrigação,
adubação química, mecanização e agrotóxicos. Com propaganda forte, apoiada por
instituições como FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations)
e Banco Mundial, logo a mensagem foi disseminada, sementes distribuídas e alterações
profundas feitas na estrutura agrária.
Resultado:
o mundo continua cheio de famintos e o veneno se apossou das mesas das famílias.
A estratégia na época vista como revolucionária só trouxe ganhos às grandes
corporações, que hoje são cinco no total a controlar as sementes do mundo
inteiro (Bayer-Monsanto, Syngenta, Dupont, Basf e Dow). “Em 1965 foi criada a primeira
lei de sementes para regulamentar a fiscalização do comércio de sementes no
Brasil (Lei nº 4.727), que impedia os materiais crioulos de serem
comercializados, assim como a integração de programas públicos de aquisição,
troca e distribuição de sementes. Uma concentração de mercado que levou ao
desaparecimento de muitas espécies, variedades”, complementa Flavia. Fora isso,
pequenos produtores rurais que não tinham recursos para aderir ao “pacote
completo” da dita revolução acumularam dívidas e perderam suas terras na
tentativa de se enquadrarem no novo cenário, distante de sua realidade
sociocultural e econômica. Não só as sementes, mas todo o conhecimento
tradicional atrelado a elas – de como plantar, colher, cultivar segundo as leis
da natureza – também desaparecia.
Insegurança alimentar: as grandes
ameaças no Brasil
Troca de sementes durante a II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais. Foto: Kamikia Kisedje/AFP |
Na
II Carta Aberta de Mojkarakô, elaborada durante a Feira pelas lideranças
indígenas presentes, demandas e reivindicações foram feitas em relação à
segurança alimentar dos povos indígenas. Entre elas, está a exigência da
instituição do Programa Nacional para a Redução do Uso de Agrotóxicos
(PRONARA). O Brasil é o país que mais usa agrotóxicos no mundo, mesmo não sendo
o maior produtor agrícola. Nossas sementes melhoradas são criadas para
dependerem de agrotóxicos em grandes quantidades. A preocupação dos grandes
produtores não é se o consumidor vai ingerir resíduos químicos, tantos sem
ideia do quanto aquelas frutas ou legumes que veem tão bonitos estão
contaminados; se os trabalhadores rurais são intoxicados durante sua rotina de
trabalho, muitas vezes sem os equipamentos e roupas próprios, e contrairão
doenças crônicas, câncer, problemas neurológicos, problemas reprodutivos; se os
rios, o ar, a terra, a chuva, os lençóis freáticos ficarão contaminados por
anos, atingindo as comunidades que dependem deles para sobreviver. O objetivo é
produzir cada vez mais. É destruir quem ataca suas lavouras, as pragas e
insetos que tornaram-se mais resistentes ao longo dos anos por conta do uso inconsequente
de veneno. Por isso também, os guerreiros Mebengokré exigem “que sejam
urgentemente implantadas faixas de proteção ambiental no entorno de Terras
Indígenas, proibindo o uso de transgênicos e a pulverização de agrotóxicos”.
Em
2008, a Anvisa iniciou a reavaliação de 14 pesticidas que podem apresentar
riscos à saúde. Até agora, nenhuma conclusão foi alcançada. No Brasil, usamos
agrotóxicos considerados “muito perigosos”, proibidos em outros países ditos de
primeiro mundo, como EUA e membros da União Europeia. São muitos deles,
inclusive, que não consomem, mas continuam produzindo e vendendo aos países em
desenvolvimento. Para piorar, o Governo brasileiro concede redução de 60% do
ICMS, isenção total de PIS/COFINS e do IPI (Imposto sobre Produtos
Industrializados) à produção e comércio dos pesticidas. Nesse contexto, os
Mebengokré reivindicam que seja garantida a isenção de impostos aos produtos da
Sociobiodiversidade e que o PLANAPO (Plano Nacional de Agroecologia e Produção
Orgânica) fortaleça o diálogo com os povos indígenas e incorpore mais ações
para a promoção da soberania alimentar e nutricional, a conservação de sementes
tradicionais e a geração de renda.
“Dia
das eleições tá perto. Precisamos de representantes indígenas no governo”,
alerta Bengoti Kayapó, assessor indígena da Associação Floresta Protegida, ao
final da discussão realizada na Feira. Diante de tantas ameaças, os Mebengokré
finalizam a carta-aberta com um apelo: “Por fim, esperamos que a sociedade
brasileira, inclusive aqueles que nos têm atacado reiteradamente, perceba a
contribuição fundamental que os povos indígenas representam para as presentes e
futuras gerações, para a qualidade do ar que respiramos e da água que bebemos,
e que possamos conviver de forma pacífica e respeitosa, e trabalhar juntos por
um Brasil e um mundo melhor”.
Texto:
Ana Ferrareze
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