quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Projeto Origens Brasil: de onde vem o que você compra?

A coleta das castanhas gera renda sustentável ao povo Kayapó. Foto: Simone Giovine
Em 2012, a engenheira florestal Patrícia Cota Gomes participou da I Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais, na Aldeia Mojkarakô. Representando o Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), instituição com sede em Piracicaba (SP) da qual é coordenadora de projetos, na época ela apresentou aos Kayapó uma ideia ainda em construção chamada Origens Brasil, que criaria um selo de identificação de origem e valorização de produtos agroextrativistas de povos tradicionais e indígenas. Em 2016, ela voltou à mesma aldeia para a segunda edição da Feira de Sementes, desta vez para contar os primeiros resultados da iniciativa, em andamento desde o mês de março. “Em 2010 o ISA convidou o Imaflora para apoiar a região da Terra do Meio na busca de soluções para promover a valorização de populações tradicionais e de sua cadeia de produtos da biodiversidade. As comunidades tinham o desejo de voltar a ter orgulho da sua cultura e produção tradicional. Na época, as atividades ilegais e predatórias na região (como o garimpo e a madeira ilegal) se mostravam mais atrativas do ponto de vista financeiro do que as atividades tradicionais, que conservavam a floresta. Era um desafio”, relembra Patrícia.

O selo Origens Brasil foi criado com o objetivo de reconhecer os produtos provenientes de um novo conceito, que são os Territórios de Diversidade Socioambiental – aqueles que contam com um corredor de áreas protegidas com expressiva diversidade socioambiental e possuem cadeias produtivas estruturadas e em operação, além de instituições atuantes, articulações e espaços democráticos em diálogo com as populações tradicionais e indígenas que neles vivem. “O Xingu é um território com um enorme patrimônio socioambiental e possui uma governança estabelecida para a produção. Por isso, foi o primeiro território, de outros que virão, a ser reconhecido pelo Origens Brasil”, conta Patrícia. 


Patrícia Cota Gomes, do Imaflora, apresenta o Selo Origens Brasil aos Kayapó durante II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais. Foto: Simone Giovine/AFP
O selo conecta produtores, compradores e consumidores finais, criando mais transparência na relação comercial entre eles. Os primeiros disponibilizam todas as informações sobre seus produtos na plataforma (www.origensbrasil.org.br), acessada pelos últimos por meio de um QR Code impresso nas embalagens, acompanhado da frase “Este produto respeita a diversidade socioambiental do Xingu”. Com isso, o selo garante a origem e rastreabilidade do produto, permitindo ao consumidor conhecer o território de origem, as pessoas que coletaram a produção e pra quem foi vendido. O selo ainda irá monitorar, por meio de um sistema de monitoramento de impacto, a contribuição do Origens Brasil para a manutenção da diversidade socioambiental dos territórios e a comercialização ética, assegurando que as relações comerciais foram realizadas por meio de diálogo entre empresas e comunidades, com pagamento a preços justos, de forma a respeitar e valorizar o modo de vida das populações tradicionais e povos indígenas.


O Xingu é o primeiro território compreendido pelo Origens Brasil. Até o momento, 12 instituições locais, comunitárias e indígenas aderiram ao projeto junto ao Imaflora, gestor da iniciativa. Dessas, fazem parte do Comitê Territorial do Xingu o ISA (Instituto Socioambiental), o Instituto Kabu, a AFP (Associação Floresta Protegida), a Atix (Associação Terra Indígena Xingu) e a AMORA (Associação dos Moradores da Reserva Extrativista do Anfrísio). As outras são COOBAY, Amoreri, Amomex, Povo Xipaya, Povo Kuruaya, Povo Xikrin e Instituto Raoni. O território da Calha Norte será o próximo a ser inserido na iniciativa, em 2017, e, assim como o Xingu, possui grande relevância pela sua dimensão e atributos socioambientais, abrangendo 70 municípios nos estados do Amazonas, Roraima, Pará e Amapá, onde vivem quilombolas, indígenas e extrativistas e encontra-se uma diversidade enorme de produtos associados à cultura destas populações.

Cacique Raoni Metuktire com as castanhas
Kayapó do Projeto Origens Brasil
Foto: Simone Giovine/AFP
Podem aderir ao selo produtos do extrativismo (como óleos vegetais, resinas, sementes, frutos, folhas, exsudatos, raízes), produtos agroextrativistas de roças tradicionais (como farinha, pimenta, amendoim, mel) e produtos da cultura (como cestaria, grafismos, desenhos estampados em objetos, peças de vestuários, bijuterias). Não entram, por enquanto, madeira, pescado, pecuária e produtos agrícolas de roças não-tradicionais. No total, já são 245 produtores em 38 grupos registrados na plataforma, e cinco empresas aderidas no projeto: Wickbold (com os pães Grão Sabor, que levam castanhas do Pará), a Firmenich (óleo de copaíba) e a Mercur (borracha natural), as três com a matéria-prima dos extrativistas das Resex da Terra do Meio; o Grupo Pão de Açúcar, pelo Programa Caras do Brasil (com o mel do Parque Indígena do Xingu, que foi o primeiro produto indígena nacional a receber o certificado de inspeção federal - SIF - e o selo de produto orgânico); e a Tucum (com artesanato indígena de diferentes etnias). 

“Pensamos em nosso selo para que o kuben (não-indígena) veja nossa história. Porque nós tiramos nossa castanha e não sabemos para onde ela vai. E o kuben também não sabe de onde ela veio quando a compra”, diz David Atydjaree, representante Kayapó no projeto. Quando o consumidor digita o código da castanha no site, é direcionado a uma página com informações sobre o Território Kayapó, o número de pessoas beneficiadas com a relação comercial, os extrativistas indígenas responsáveis pela coleta e onde e como a mesma é feita, com o auxílio de mapas e fotografias. Vai descobrir, por exemplo, que “a coleta da castanha é uma atividade que representa não apenas uma das opções mais promissoras para a geração de renda sustentável, mas também uma complementação da dieta alimentar indígena, além da oportunidade de promover e valorizar as práticas da cultura Kayapó”, assim como “se o corredor do Xingu não existisse, os brasileiros teriam que conviver com 1 bilhão de toneladas de CO2 a mais na atmosfera”.

Confira vídeos do projeto:





Texto: Ana Ferrareze


Krahô: precursores das Feiras de Sementes e convidados especiais na segunda edição Mebengôkré


Os Krahô chegaram no dia 12 de setembro na Aldeia Moikarakô, o primeiro dia da II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais. Viajaram de suas aldeias no Tocantins para prestigiarem os parentes em mais uma bela edição de trocas e encontros. O convite chegou alguns meses antes, no início de junho, quando o Cacique Isaac e sua mulher Pankaro visitaram as aldeias Manoel Alves, Pedra Branca, Cachoeira e Pé de Coco para levarem pessoalmente o convite. Por teremsido precursores e fonte de inspiração na realização das feiras de sementes, os Krahô foram convidados especiais dos Mebengôkré nesta edição, que teve como foco o povo Kayapó e a troca entre as aldeias da etnia, a fim de fortalecer o movimento interno da agricultura tradicional.

O caminho até Moikarakô é desafiador. Normalmente o trajeto é feito via fluvial, em viagens de barco que demoram até dois dias, dependendo da época do ano e das cheias e secas dos rios; ou em voos que levam 30 minutos a partir de Ourilândia, mas custam cerca de R$ 2.500, ida e volta. A decisão para recepcionar os convidados da feira foi tomada pelas lideranças Mebengôkré, que optaram por abrir uma estrada a partir de São Félix do Xingu. Um processo que durou cerca de um mês e foi financiado pela Associação Floresta Protegida.

Em meio à floresta fechada, a estrada de terra incorporou-se. As chuvas fizeram lama, enquanto os ônibus apelidados de “topa-tudo” e caminhonetes 4x4 enfrentavam a missão de chegar. Um tempo subjetivo, como a natureza, com duração indeterminada. Podia-se levar seis horas para chegar, assim como 24h. Podia-se nem chegar. Para os Krahô, um atoleiro fez com que passassem a noite no ônibus, esperando o dia amanhecer para a viagem continuar com mais segurança. “O caminho foi longo, mas o importante é que estamos aqui, certo?”, disse o líder Getúlio Kruwakraj Krahô, da Aldeia Manoel Alves, assim que chegou. “Fora que dormi na minha casa, né? Estávamos no meio da mata”. Os guerreiros indígenas enfrentam empecilhos muito maiores em sua rotina.

Getulio Kruwakraj Krahô e Tadeu Togrekrat Krahô com as sementes levadas na Feira
Foto: Kamikia Kisedje/AFP






OsKrahô chegaram com as bolsas cheias de sementes. Pela lona colocada no centro da Casa dos Guerreiros, Getulio achou seu cantinho para espalhar o juço (espécie de castanha, “boa para febre, dor de garganta”), o pini (parecido com um cipó, bem cheiroso, que “faz bem pra curar dor de cabeça, corpo quente, fraqueza”), cabacinha e babaçu. “Vou ver se encontro alguma semente interessante pra trocar, mas mesmo se não encontrar eu vou dar o que trouxe. Porque depois Deus me dá sempre mais”, disse. Tadeu Togrekrat Krahô, filósofo e agricultor da Aldeia Pé de Coco, levou diferentes variedades de milho para a Feira, separados desde que receberam o convite para participarem. Entre as sementes levadas pelos parentes Krahô estavam as pàtkàrà (fava de couro de iambê), py (urucum), ãptyre (feijão andô), kôkytmry’ê (feijão coruja), akàngre (cajuí), potosôto (feijão trepa-pau) e arehy (feião arroz). Também compartilharam artesanato, principalmente cestos feitos com folha de buriti.

Corrida de tora. Foto: Simone Giovine/AFP


De buriti também são as toras usadas nas corridas em pares que são muito tradicionais entre os Krahô. Elas acontecem em festas, celebrações, após caçadas e pescarias coletivas. Dois grupos são formados e a tora é carregada no ombro pelos competidores, que saem em disparada, passando aos companheiros ao longo do trajeto. A corrida animou uma das tardes na Feira, levando homens e mulheres indígenas e não-indígenas a mostrar sua força e velocidade.

O cantor Osmar Kukon Krahô
Foto: Simone Giovine/AFP
O canto também é um dos aspectos mais marcantes na cultura ritualística desse povo. Cada festa tem um canto específico, com pedidos e agradecimentos de acordo com a ocasião. Eles começam pela madrugada e continuam até o anoitecer. Na Feira, o cantor Osmar Kukon, da Aldeia Manoel Alves, fez sua voz ecoar com o maracá a partir das 4h, no centro do pátio central da aldeia. Alguns acordaram e o acompanharam pessoalmente; em casa, quem preferiu continuar a dormir teve a chance de vivenciar os cantos misturando-se aos sonhos. Ao longo do dia, muitos momentos levam ao cantar. As refeições, as reuniões, os banhos, o início da noite. “Aprendi com o meu avô e canto desde pequeno”, lembra Kukon. “Tem que começar de criança pra não ter vergonha de cantar na frente de todo mundo. Na minha aldeia já estou ensinando dois meninos”.




Mulheres Krahô na II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais. Foto: Simone Giovine/AFP

Integração cultural: meprire Kayapó corta o cabelo ao estilo Krahô. Foto: Simone Giovine/AFP


Texto: Ana Ferrareze


quarta-feira, 5 de outubro de 2016

A origem das Feiras de Sementes como fortalecimento das tecnologias indígenas

“Tá todo mundo de olho na terra de vocês. Os kuben dizem que índio não planta. É responsabilidade de vocês também se compram comida no supermercado, se aceitam sementes melhoradas, muitas vezes da Funai. O povo de fora quer comer comida boa, orgânica. E quem tem a chance de produzir isso? Vocês, nas Terras Indígenas”, declara Terezinha Dias, pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, durante mesa redonda na II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais. Segurando uma muda de mandioca nas mãos, completa: “Quem fez melhoramento dessa planta? Foi pesquisador? Não, foi indígena. Tá cheio de cientista aqui. E não é da Embrapa, não é de universidade. As universidades tão vindo aqui pra aprender com vocês. São vocês os cientistas”.

Terezinha Dias durante mesa-redonda na II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais
Foto: Simone Giovine/AFP
A agricultura surgiu quando a mulher-estrela Caxêkw’yj desceu do céu para entregar o milho e sementes de todas as espécies para que seu amor na terra e a família dele pudessem plantar a primeira roça e alimentar todo o povo Krahô. De lá até a década de 1990, no século 20, muito aconteceu. O invasor não-indígena, não satisfeito em dizimar populações indígenas inteiras, também se esforçou em destruir a cultura ancestral dos povos originários, tentando homogeneizá-los e espelhá-los ao seu modo de vida. Até hoje é assim. Um dos maiores ataques foi justamente ao presente de Caxakw’yj. Os mehin foram incentivados a abandonar suas diversificadas roças de mandioca, nhame, milho e outras culturas pela monocultura do arroz. Com o tempo perderam muitas de suas sementes, variedades agrícolas e conhecimentos tradicionais de plantio e colheita de alimentos. Até que em 1994 os caciques se uniram em uma ação de recuperação cultural. Foram até Brasília, orientados pelo indigenista Fernando Schiavini e pela Funai, em busca de seu põhypej (milho) ancestral. Ali, encontraram quatro variedades dele nas “geladeiras” de sementes da Embrapa, entre mais de 200 mil amostras de mais de 700 espécies armazenadas. Com eles, o povo Krahô se fortaleceu, reconquistando suas tradições alimentares.

Este foi o início do movimento que originou a volta das feiras de troca de sementes tradicionais, como a II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais, que aconteceu na Aldeia Moikarakô (T.I. Kayapó), de 12 a 16 de setembro. Os Krahô, motivados por terem encontrado seu põhypej, organizaram a primeira edição em seu território, em 1997, que reuniu cerca de 2 mil pessoas. De lá para cá já realizaram 10 encontros, que, além de proporcionarem o resgate de variedades e o manejo comunitário da agrobiodiversidade, promovem o encontro entre os parentes, discussões políticas e a valorização dos saberes e fazeres indígenas.

Parentes de etnias como Xerente (Tocantins) e Parecí (Mato Grosso) se espelharam na iniciativa Krahô e realizaram suas próprias feiras em seus territórios. Os Mebengôkré (Kayapó) já estão em sua segunda edição – a primeira aconteceu em 2012. “Não esquecemos que vocês cumpriram a promessa que fizeram quando nos encontramos na Feira Krahô. Na época disseram que nos esperariam aqui, na de vocês. E fizeram”, relembrou Terezinha durante nossa II Feira. “Se um cacique abrir mão da fortaleza, enfraquece. Vocês têm condição de revegetar este País inteiro, que vai começar a querer consumir apenas a semente florestal”.

Na II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais, mais de 50 variedades de sementes foram apresentadas e trocadas. Espécies como banana vermelha (tryryti kamrêkti), café (ngôtyk’y), arroz (bàygogo’ynhêti), cana (kadjwati), feijão vermelho (màtkrwy’yti), mogno (kubẽkà). “É importante lembrar que as trocas de sementes já existem mesmo fora das feiras”, destaca Sol Gonzales, da Associação Floresta Protegida. “Precisamos fortalecer essa prática comum e tradicional. Há grande diversidade cultivada pelos Mebengôkré, principalmente de batata, abóbora, mandioca e espécies frutíferas”.

Meprires acompanham a troca de artesanato.
Foto: Simone Giovine/AFP
Além da troca de sementes, é tradicional entre os indígenas a troca de peças materiais, que também aconteceu no evento, na tarde do dia 14 de setembro. Fibras usadas na fabricação de cestos e artesanatos foram levados pelos parentes. Com a criação dos artesanatos, os indígenas resgatam matérias-primas e os saberes e fazeres ancestrais, além de aumentarem sua geração de renda e inventarem novas tecnologias culturais.

Tecnologia é uma palavra que ganha seu verdadeiro sentido em uma feira de sementes. Hoje, pensamos nela atrelada a eletrônicos de última linha, consequência de uma sociedade cada vez mais mecanizada e urbana. Na verdade, tecnologia é qualquer coisa desenvolvida em benefício de nosso bem-estar. E não há melhor bem-estar do que ter uma alimentação saudável, livre de agrotóxicos, natural. Fortalecer movimentos de trocas de sementes crioulas e preservação da cultura tradicional é um ato político de resistência. Nessa missão, os Mebengôkré, assim como todos os povos indígenas que enfrentam a luta diária pelo reconhecimento de sua cultura, são grandes guerreiros na linha de frente de nosso exército nacional.

Texto: Ana Ferrareze

terça-feira, 4 de outubro de 2016

A batalha por nossos meprires

Mepritire da Aldeia Kendjam, T.I. Kayapó, com variedades de jot (batata) e katen (cabaça). Foto: Simone Giovine/AFP
Durante os aben pudji (reuniões) da II Feira Mebengokré (Kayapó) de Sementes Tradicionais, discutimos muito sobre a importância de nos alimentarmos com os produtos de nossas roças, já que os alimentos dos kuben estão cheios de agrotóxicos. Os nossos antepassados, que não conheciam os alimentos dos kuben, não sofriam de nenhuma das doenças que temos hoje. Agora, nossa batalha deverá ser ensinar as novas gerações a seguir cultivando as roças e alimentar-se de nossos produtos. Só assim seguiremos tyj, fortes para continuarmos lutando por nossa autonomia.

Leia mais sobre segurança alimentar e proteção das sementes tradicionais em http://migre.me/v8H5p

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A luta indígena pela segurança alimentar e proteção das sementes tradicionais

Foto: Simone Giovine/AFP
“Não quero invasores nas terras delimitadas. Não aceito madeireiro e garimpeiro em Terra Indígena. Não quero pescador entrando pra pescar. Não podemos parar de lutar pela nossa terra. Caciques têm que ir pra Brasília levar documento e falar com Michel Temer”, alerta o Cacique Raoni Metuktire, na primeira mesa redonda realizada durante a II Feira Mebengokré de Sementes Tradicionais. O tema da discussão era segurança alimentar e preservação das sementes tradicionais, mas nenhum assunto que envolve a causa indígena se distancia da questão da demarcação de terras. Isso porque os povos originários de nosso País têm a terra como um bem imprescindível para seu bem-estar e reprodução física e cultural, em uma relação coletiva muito diferente do conceito de propriedade privada da sociedade capitalista na qual estamos inseridos. Apenas com o seu direito à terra assegurado eles podem se dedicar à sua maior tecnologia: a semente.

“As sementes tradicionais são frutos de um cuidadoso trabalho de observação, seleção, cruzamentos, de práticas tradicionais, de trocas ancestrais”, explica Flavia Londres, da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia). “São materiais altamente adaptados às condições específicas de cada região, desenvolvidos há mais de 10 mil anos em um trabalho realizado principalmente pelas mulheres, que perceberam sua importância e os adaptaram às condições do campo”. Flavia relata que além dessas sementes terem sido melhoradas ao longo do tempo, elas são de livre circulação, não têm dono, podem ser trocadas à vontade entre diferentes povos.

É o contrário do que acontece com as sementes desenvolvidas nos centros de pesquisa públicos e privados, que começaram a ganhar muita importância e recursos a partir da segunda metade do século 20, no contexto que ficou conhecido como Revolução Verde, que visava produzir alimento em grande quantidade e tinha como mote o fim da fome no mundo. “O problema é que essa semente melhorada vinha com um pacote para funcionar. Ela só podia ser produzida nas chamadas ‘condições ótimas’”, conta Flavia. Por isso, foi preciso artificializar. Ou seja, investir no desenvolvimento de sistemas de irrigação, adubação química, mecanização e agrotóxicos. Com propaganda forte, apoiada por instituições como FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) e Banco Mundial, logo a mensagem foi disseminada, sementes distribuídas e alterações profundas feitas na estrutura agrária.

Resultado: o mundo continua cheio de famintos e o veneno se apossou das mesas das famílias. A estratégia na época vista como revolucionária só trouxe ganhos às grandes corporações, que hoje são cinco no total a controlar as sementes do mundo inteiro (Bayer-Monsanto, Syngenta, Dupont, Basf e Dow). “Em 1965 foi criada a primeira lei de sementes para regulamentar a fiscalização do comércio de sementes no Brasil (Lei nº 4.727), que impedia os materiais crioulos de serem comercializados, assim como a integração de programas públicos de aquisição, troca e distribuição de sementes. Uma concentração de mercado que levou ao desaparecimento de muitas espécies, variedades”, complementa Flavia. Fora isso, pequenos produtores rurais que não tinham recursos para aderir ao “pacote completo” da dita revolução acumularam dívidas e perderam suas terras na tentativa de se enquadrarem no novo cenário, distante de sua realidade sociocultural e econômica. Não só as sementes, mas todo o conhecimento tradicional atrelado a elas – de como plantar, colher, cultivar segundo as leis da natureza – também desaparecia.

Insegurança alimentar: as grandes ameaças no Brasil

Troca de sementes durante a II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais. Foto: Kamikia Kisedje/AFP
A legislação avançou no Brasil desde 1965. Conquista importante de movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Em 2003, foi implementada a Lei nº 10.711, mais conhecida como Lei de Sementes (é a terceira lei nacional – substituiu a nº 6.507/1977), que reconheceu a semente de agricultores familiares, assentados da reforma agrária e povos indígenas. Sem necessidade de registro (o RNC – Registro Nacional de Cultivares), ela pode ser plantada, consumida, comercializada e trocada entre eles – a comercialização no mercado formal não é autorizada. Ainda assim, este é apenas um ponto específico que contempla os sistemas locais. Estamos longe de alcançar uma legislação que não privilegie o rendimento e a produtividade praticados por empresas privadas e volte os olhos aos saberes e práticas agrícolas do pequeno produtor, ancestralmente o grande cientista do campo, deixado de escanteio.

Na II Carta Aberta de Mojkarakô, elaborada durante a Feira pelas lideranças indígenas presentes, demandas e reivindicações foram feitas em relação à segurança alimentar dos povos indígenas. Entre elas, está a exigência da instituição do Programa Nacional para a Redução do Uso de Agrotóxicos (PRONARA). O Brasil é o país que mais usa agrotóxicos no mundo, mesmo não sendo o maior produtor agrícola. Nossas sementes melhoradas são criadas para dependerem de agrotóxicos em grandes quantidades. A preocupação dos grandes produtores não é se o consumidor vai ingerir resíduos químicos, tantos sem ideia do quanto aquelas frutas ou legumes que veem tão bonitos estão contaminados; se os trabalhadores rurais são intoxicados durante sua rotina de trabalho, muitas vezes sem os equipamentos e roupas próprios, e contrairão doenças crônicas, câncer, problemas neurológicos, problemas reprodutivos; se os rios, o ar, a terra, a chuva, os lençóis freáticos ficarão contaminados por anos, atingindo as comunidades que dependem deles para sobreviver. O objetivo é produzir cada vez mais. É destruir quem ataca suas lavouras, as pragas e insetos que tornaram-se mais resistentes ao longo dos anos por conta do uso inconsequente de veneno. Por isso também, os guerreiros Mebengokré exigem “que sejam urgentemente implantadas faixas de proteção ambiental no entorno de Terras Indígenas, proibindo o uso de transgênicos e a pulverização de agrotóxicos”.

Em 2008, a Anvisa iniciou a reavaliação de 14 pesticidas que podem apresentar riscos à saúde. Até agora, nenhuma conclusão foi alcançada. No Brasil, usamos agrotóxicos considerados “muito perigosos”, proibidos em outros países ditos de primeiro mundo, como EUA e membros da União Europeia. São muitos deles, inclusive, que não consomem, mas continuam produzindo e vendendo aos países em desenvolvimento. Para piorar, o Governo brasileiro concede redução de 60% do ICMS, isenção total de PIS/COFINS e do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) à produção e comércio dos pesticidas. Nesse contexto, os Mebengokré reivindicam que seja garantida a isenção de impostos aos produtos da Sociobiodiversidade e que o PLANAPO (Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica) fortaleça o diálogo com os povos indígenas e incorpore mais ações para a promoção da soberania alimentar e nutricional, a conservação de sementes tradicionais e a geração de renda.

“Dia das eleições tá perto. Precisamos de representantes indígenas no governo”, alerta Bengoti Kayapó, assessor indígena da Associação Floresta Protegida, ao final da discussão realizada na Feira. Diante de tantas ameaças, os Mebengokré finalizam a carta-aberta com um apelo: “Por fim, esperamos que a sociedade brasileira, inclusive aqueles que nos têm atacado reiteradamente, perceba a contribuição fundamental que os povos indígenas representam para as presentes e futuras gerações, para a qualidade do ar que respiramos e da água que bebemos, e que possamos conviver de forma pacífica e respeitosa, e trabalhar juntos por um Brasil e um mundo melhor”.

Texto: Ana Ferrareze


quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Política indigenista é tema de reuniãoda II Feira Mebengokré de Sementes Tradicionais

“Sob o pretexto de que precisávamos acelerar a produção de alimentos, o governo passou a falar sobre uma coisa chamada 'melhoramento de sementes'. A prática, surgida em Nova York, foi um sucesso em países como Brasil, Índia e México, que começavam a se desenvolver economicamente através das monoculturas, mas, diferente do que se propagava, deixou um rastro de fome e desvalorização na sabedoria tradicional”, explicou Flávia Londres, da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia), durante uma das rodas de conversa da II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais.

Política nacional para os povos indígenas foi tema de roda de conversa da II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais.
Foto: Simone Giovine/ AFP

Bengoti Kayapó, assessor indígena da AFP
Foto: Simone Giovine/AFP
Entre as lideranças presentes na feira não se falava em outra coisa que não a importância de estarem juntos celebrando e discutindo os caminhos da luta indígena no Brasil. Em reunião com os colaboradores do evento, Bengoti Kayapó, assessor indígena da Associação Floresta Protegida, falou sobre a importância de uma carta com as discussões suscitadas nesses dias ser divulgada a todos os brasileiros . 

“Os atos políticos da Feira de Sementes precisam ter a repercussão necessária para mostrarmos aos kuben que estamos preparados pra defender nossos direitos”, explicou.

Os Mẽbêngôkre habitam hoje mais de 50 aldeias localizadas em seis Terras Indígenas. São elas: Badjônkore, Baú, Capoto/Jarina, Kayapó, Las Casas e Menkragnoti. Juntas, somam uma área de cerca de 11 milhões de hectares no centro-sul do Pará e norte do Mato Grosso, que está no alvo de madeireiros, fazendeiros, garimpeiros e grandes empresas, de olho nos recursos naturais deste lado do país. Este cenário coloca o povo Mebengokré em situação de protagonismo permanente na luta pelos direitos indígenas e proteção da Floresta Amazônica.

Este protagonismo rendeu a Raoni Metuktire fama internacional por sua atuação em favor da Floresta Amazônica. Aos 86 anos, Raoni confessa que “teve uma época que ficava viajando muito pra fora falando do Brasil e dos nossos direitos. Era tanta reunião que eu quase não lembrava como era a vida, mas foi então que me fizeram comer um peixe com batatas e eu me lembrei porque é que não podemos esquecer da nossa luta”.

Raoni fala durante roda de prosa sobre politica indigenista
Foto: Simone Giovine/AFP
A lembrança de Raoni a partir da alimentação que lhe foi oferecida era a certeza, para ele e para muitos que ali estavam, de que não há como desassociar as questões relacionadas a segurança alimentar e saúde indígena das questões políticas. Assim sendo a II Feira Mebengokré de Sementes Tradicionais serviu a este fim. Se de um lado a atividade foi uma grande festa de intercâmbios pela preservação e segurança alimentar dos povos da floresta, de outro foi também um espaço de preparação para que lideranças e a comunidade Mebengôkré se pintassem para a guerra.

A guerra de que falamos aqui tem como força bélica as ações do Estado, que coleciona uma série de projetos, leis e decretos que, caso concretizados, enfraquecerão os direitos indígenas e alterarão profundamente a vida da população brasileira, colocando em risco toda a diversidade cultural e alimentar que torna o Brasil único, gigante e soberano. Contra esta força permanecem as comunidades indígenas com a sabedoria milenar dos homens e mulheres que conseguiram preservar a tecnologia social mais antiga do mundo: o contato harmonioso com a floresta.

O evento foi marcado por importantes discussões políticas, sobretudo no campo da biodiversidade, e de duros apontamentos sobre a modificação genética das sementes tradicionais. A ideia que deu luz à “Revolução Verde” foi defendida no Brasil e em todo o mundo como o caminho para a geração de alimentos e sustento de uma população pobre e faminta, mas a história mostra que este processo foi também responsável por aprofundar as desigualdades entre grandes e pequenos produtores rurais, a marginalização e insegurança alimentar entre os povos tradicionais e da floresta e pelo desaparecimento de variedades biológicas de sementes extremamente ricas e que garantiam a autonomia dos povos tradicionais.

Isso significou no Brasil a aceleração de um processo de etnocídio que caminha a passos largos para seu ápice nos três poderes da república, em um complicado momento para a política nacional brasileira, no qual a democracia está fragilizada e os direitos indígenas mais ameaçados do que antes de 1988, quando não havia legislação que garantisse direitos a eles. Todas essas discussões foram contempladas na Carta-Aberta de Mojkarakô, disponível aqui

Com este cenário, a troca de sementes tradicionais não é só uma atividade de conservação ambiental ou resgate da segurança alimentar, mas um ato político dos mais importantes. Na ocasião, Rafael Galvão, coordenador de projetos da Associação Floresta Protegida (AFP), apresentou às lideranças presentes um apanhado geral das principais ameaças aos povos indígenas presentes nos três poderes. 

"É preciso ficar em alerta a todas as ameaças que passam e escolher o melhor momento para agir", pontuou Galvão. 

Confira abaixo os projetos, ementas e principais caminhos que afrouxam os direitos indígenas: 



Executivo

1. Portaria 303/12: estende e generaliza para todas as Terras Indígenas as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal utilizadas na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.  Entenda o caso, aqui


2. Decreto 7957/13: regulamenta o uso da força bélica para a articulação, integração e cooperação entre os órgãos e entidades públicas ambientais, visando o aumento da eficiência administrativa nas ações ambientais de caráter preventivo ou repressivo. Em março de 2013, a Força Nacional e o exército brasileiro foram acionados, com base no Decreto 7957/13, para realizar operações militares contra os Munduruku, na região do Médio Tapajós, a fim de viabilizar estudos de impactos ambientais para o licenciamento da construção de um complexo hidroelétrico. 

3. Portaria Interministerial 60/15: a portaria restringe as distâncias de uma obra nas quais seus impactos socioambientais devem ser considerados e define prazo máximo de 105 dias para a manifestação nos licenciamentos de órgãos como a Fundação Nacional do Índio (Funai), Fundação Cultural Palmares (FCP) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Depois deste prazo o licenciamento poderá seguir em frente sem a manifestação desses órgãos.


Legislativo

1. PEC 215: o projeto transfere do Governo Federal para o Congresso Nacional a função de decidir ou não pela demarcação de terras indígenas. O texto deve passar ainda pelo Plenário da Câmara e do Senado para ser aprovado definitivamente, mas só a atitude de colocar em discussão Terras Indígenas sem a presença dos principais afetados demonstra o longo caminho a ser percorrido pelos povos da floresta na garantia de seu direito constitucional.

2. Pl 1610/96: regulamenta a mineração em Terras Indígenas. Entenda melhor, aqui

3. Pl 227/2012: limita o direito de posse e usufruto das terras tradicionais pelos povos indígenas. Entenda melhor, aqui

4. PEC 237/13: permite a posse indireta de Terras Indígenas aos produtores rurais. Entenda mais aqui.


Judiciário

1. Marco Temporal: esta tese propõe que só poderiam ser consideradas terras tradicionais aquelas que estivessem sob posse dos indígenas na data de 5 de outubro de 1988.


Texto: Narelly Batista



quarta-feira, 28 de setembro de 2016

II Carta Aberta de Mojkarakô é lida na 15ª Reunião Ordinária da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica

Tuire Kayapó assina a II Carta Aberta de Mojkarakô durante o encerramento da II Feira Mebengokré de Sementes Tradicionais. Foto: Simone Giovine/AFP
A II Carta Aberta de Mojkarakô (veja a Carta na íntegra AQUI) foi lida na 15a Reunião Ordinária da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), ocorrida no dia 22 de setembro, no Palácio do Planalto, em Brasília.

As demandas e reivindicações elencadas na carta foram transmitidas às autoridades do governo e representantes de redes, organizações da sociedade civil e movimentos sociais presentes e incluíram desde demandas políticas – como a posição contrária à PEC 215, ao PL 1610/1996 e à Lei 13.123/2015 –, até reivindicações diretamente relacionadas ao tema do evento – como a implantação de faixas de proteção ambiental no entorno de terras indígenas, proibindo o uso de transgênicos e a pulverização de agrotóxicos; a instituição imediata do Programa Nacional para a Redução do Uso de Agrotóxicos (PRONARA); e o fortalecimento do diálogo com os povos indígenas para o aprimoramento do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), incorporando mais ações para a promoção da soberania alimentar e nutricional, a conservação de sementes tradicionais e a geração de renda.

Entre os presentes no evento estavam o Secretário de Articulação Social da Presidência da República, Sr. Henrique Villa, o Diretor Executivo de Transferência de Tecnologia da Embrapa, Sr. Waldyr Stumpf, além de representantes do MMA, MAPA, BNDES, Embrapa e de diversas organizações e redes de articulação da sociedade civil, incluindo a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Rede Cerrado, a Rede Ecovida de Agroecologia, a Articulação Semiárido (ASA), o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), entre outras.

Nos chamou a atenção a total ausência de representantes de povos e organizações indígenas na CNAPO, especialmente considerando a grande relevância que têm, tanto como atores quanto como sujeitos de direitos, no que diz respeito à segurança alimentar e nutricional, à conservação de recursos genéticos, à proteção dos sistemas tradicionais de produção, assim como no desenvolvimento de políticas públicas ligadas a estas questões.