quarta-feira, 5 de outubro de 2016

A origem das Feiras de Sementes como fortalecimento das tecnologias indígenas

“Tá todo mundo de olho na terra de vocês. Os kuben dizem que índio não planta. É responsabilidade de vocês também se compram comida no supermercado, se aceitam sementes melhoradas, muitas vezes da Funai. O povo de fora quer comer comida boa, orgânica. E quem tem a chance de produzir isso? Vocês, nas Terras Indígenas”, declara Terezinha Dias, pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, durante mesa redonda na II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais. Segurando uma muda de mandioca nas mãos, completa: “Quem fez melhoramento dessa planta? Foi pesquisador? Não, foi indígena. Tá cheio de cientista aqui. E não é da Embrapa, não é de universidade. As universidades tão vindo aqui pra aprender com vocês. São vocês os cientistas”.

Terezinha Dias durante mesa-redonda na II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais
Foto: Simone Giovine/AFP
A agricultura surgiu quando a mulher-estrela Caxêkw’yj desceu do céu para entregar o milho e sementes de todas as espécies para que seu amor na terra e a família dele pudessem plantar a primeira roça e alimentar todo o povo Krahô. De lá até a década de 1990, no século 20, muito aconteceu. O invasor não-indígena, não satisfeito em dizimar populações indígenas inteiras, também se esforçou em destruir a cultura ancestral dos povos originários, tentando homogeneizá-los e espelhá-los ao seu modo de vida. Até hoje é assim. Um dos maiores ataques foi justamente ao presente de Caxakw’yj. Os mehin foram incentivados a abandonar suas diversificadas roças de mandioca, nhame, milho e outras culturas pela monocultura do arroz. Com o tempo perderam muitas de suas sementes, variedades agrícolas e conhecimentos tradicionais de plantio e colheita de alimentos. Até que em 1994 os caciques se uniram em uma ação de recuperação cultural. Foram até Brasília, orientados pelo indigenista Fernando Schiavini e pela Funai, em busca de seu põhypej (milho) ancestral. Ali, encontraram quatro variedades dele nas “geladeiras” de sementes da Embrapa, entre mais de 200 mil amostras de mais de 700 espécies armazenadas. Com eles, o povo Krahô se fortaleceu, reconquistando suas tradições alimentares.

Este foi o início do movimento que originou a volta das feiras de troca de sementes tradicionais, como a II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais, que aconteceu na Aldeia Moikarakô (T.I. Kayapó), de 12 a 16 de setembro. Os Krahô, motivados por terem encontrado seu põhypej, organizaram a primeira edição em seu território, em 1997, que reuniu cerca de 2 mil pessoas. De lá para cá já realizaram 10 encontros, que, além de proporcionarem o resgate de variedades e o manejo comunitário da agrobiodiversidade, promovem o encontro entre os parentes, discussões políticas e a valorização dos saberes e fazeres indígenas.

Parentes de etnias como Xerente (Tocantins) e Parecí (Mato Grosso) se espelharam na iniciativa Krahô e realizaram suas próprias feiras em seus territórios. Os Mebengôkré (Kayapó) já estão em sua segunda edição – a primeira aconteceu em 2012. “Não esquecemos que vocês cumpriram a promessa que fizeram quando nos encontramos na Feira Krahô. Na época disseram que nos esperariam aqui, na de vocês. E fizeram”, relembrou Terezinha durante nossa II Feira. “Se um cacique abrir mão da fortaleza, enfraquece. Vocês têm condição de revegetar este País inteiro, que vai começar a querer consumir apenas a semente florestal”.

Na II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais, mais de 50 variedades de sementes foram apresentadas e trocadas. Espécies como banana vermelha (tryryti kamrêkti), café (ngôtyk’y), arroz (bàygogo’ynhêti), cana (kadjwati), feijão vermelho (màtkrwy’yti), mogno (kubẽkà). “É importante lembrar que as trocas de sementes já existem mesmo fora das feiras”, destaca Sol Gonzales, da Associação Floresta Protegida. “Precisamos fortalecer essa prática comum e tradicional. Há grande diversidade cultivada pelos Mebengôkré, principalmente de batata, abóbora, mandioca e espécies frutíferas”.

Meprires acompanham a troca de artesanato.
Foto: Simone Giovine/AFP
Além da troca de sementes, é tradicional entre os indígenas a troca de peças materiais, que também aconteceu no evento, na tarde do dia 14 de setembro. Fibras usadas na fabricação de cestos e artesanatos foram levados pelos parentes. Com a criação dos artesanatos, os indígenas resgatam matérias-primas e os saberes e fazeres ancestrais, além de aumentarem sua geração de renda e inventarem novas tecnologias culturais.

Tecnologia é uma palavra que ganha seu verdadeiro sentido em uma feira de sementes. Hoje, pensamos nela atrelada a eletrônicos de última linha, consequência de uma sociedade cada vez mais mecanizada e urbana. Na verdade, tecnologia é qualquer coisa desenvolvida em benefício de nosso bem-estar. E não há melhor bem-estar do que ter uma alimentação saudável, livre de agrotóxicos, natural. Fortalecer movimentos de trocas de sementes crioulas e preservação da cultura tradicional é um ato político de resistência. Nessa missão, os Mebengôkré, assim como todos os povos indígenas que enfrentam a luta diária pelo reconhecimento de sua cultura, são grandes guerreiros na linha de frente de nosso exército nacional.

Texto: Ana Ferrareze

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