“Tá todo mundo de olho na terra de
vocês. Os kuben dizem que índio não planta. É responsabilidade de vocês também
se compram comida no supermercado, se aceitam sementes melhoradas, muitas vezes
da Funai. O povo de fora quer comer comida boa, orgânica. E quem tem a chance
de produzir isso? Vocês, nas Terras Indígenas”, declara Terezinha Dias, pesquisadora
da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, durante mesa redonda na II Feira
Mebengôkré de Sementes Tradicionais. Segurando uma muda de mandioca nas mãos,
completa: “Quem fez melhoramento dessa planta? Foi pesquisador? Não, foi
indígena. Tá cheio de cientista aqui. E não é da Embrapa, não é de
universidade. As universidades tão vindo aqui pra aprender com vocês. São vocês
os cientistas”.
Terezinha Dias durante mesa-redonda na II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais Foto: Simone Giovine/AFP |
A
agricultura surgiu quando a mulher-estrela Caxêkw’yj desceu do céu para
entregar o milho e sementes de todas as espécies para que seu amor na terra e a
família dele pudessem plantar a primeira roça e alimentar todo o povo Krahô. De
lá até a década de 1990, no século 20, muito aconteceu. O invasor não-indígena,
não satisfeito em dizimar populações indígenas inteiras, também se esforçou em
destruir a cultura ancestral dos povos originários, tentando homogeneizá-los e
espelhá-los ao seu modo de vida. Até hoje é assim. Um dos maiores ataques foi
justamente ao presente de Caxakw’yj. Os mehin foram incentivados a abandonar
suas diversificadas roças de mandioca, nhame, milho e outras culturas pela monocultura
do arroz. Com o tempo perderam muitas de suas sementes, variedades agrícolas e
conhecimentos tradicionais de plantio e colheita de alimentos. Até que em 1994
os caciques se uniram em uma ação de recuperação cultural. Foram até Brasília,
orientados pelo indigenista Fernando Schiavini e pela Funai, em busca de seu
põhypej (milho) ancestral. Ali, encontraram quatro variedades dele nas
“geladeiras” de sementes da Embrapa, entre mais de 200 mil amostras de mais de
700 espécies armazenadas. Com eles, o povo Krahô se fortaleceu, reconquistando
suas tradições alimentares.
Este
foi o início do movimento que originou a volta das feiras de troca de sementes
tradicionais, como a II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais, que
aconteceu na Aldeia Moikarakô (T.I. Kayapó), de 12 a 16 de setembro. Os Krahô,
motivados por terem encontrado seu põhypej, organizaram a primeira edição em
seu território, em 1997, que reuniu cerca de 2 mil pessoas. De lá para cá já
realizaram 10 encontros, que, além de proporcionarem o resgate de variedades e
o manejo comunitário da agrobiodiversidade, promovem o encontro entre os
parentes, discussões políticas e a valorização dos saberes e fazeres indígenas.
Parentes
de etnias como Xerente (Tocantins) e Parecí (Mato Grosso) se espelharam na
iniciativa Krahô e realizaram suas próprias feiras em seus territórios. Os
Mebengôkré (Kayapó) já estão em sua segunda edição – a primeira aconteceu em
2012. “Não esquecemos que vocês cumpriram a promessa que fizeram quando nos
encontramos na Feira Krahô. Na época disseram que nos esperariam aqui, na de
vocês. E fizeram”, relembrou Terezinha durante nossa II Feira. “Se um cacique
abrir mão da fortaleza, enfraquece. Vocês têm condição de revegetar este País
inteiro, que vai começar a querer consumir apenas a semente florestal”.
Na
II Feira Mebengôkré de Sementes Tradicionais, mais de 50 variedades de sementes
foram apresentadas e trocadas. Espécies como banana vermelha (tryryti
kamrêkti), café (ngôtyk’y), arroz (bàygogo’ynhêti), cana
(kadjwati), feijão vermelho (màtkrwy’yti), mogno (kubẽkà). “É importante lembrar que as
trocas de sementes já existem mesmo fora das feiras”, destaca Sol Gonzales, da
Associação Floresta Protegida. “Precisamos fortalecer essa prática comum e
tradicional. Há grande diversidade cultivada pelos Mebengôkré, principalmente
de batata, abóbora, mandioca e espécies frutíferas”.
Meprires acompanham a troca de artesanato. Foto: Simone Giovine/AFP |
Além
da troca de sementes, é tradicional entre os indígenas a troca de peças
materiais, que também aconteceu no evento, na tarde do dia 14 de setembro.
Fibras usadas na fabricação de cestos e artesanatos foram levados pelos
parentes. Com a criação dos artesanatos, os indígenas resgatam matérias-primas
e os saberes e fazeres ancestrais, além de aumentarem sua geração de renda e
inventarem novas tecnologias culturais.
Tecnologia
é uma palavra que ganha seu verdadeiro sentido em uma feira de sementes. Hoje,
pensamos nela atrelada a eletrônicos de última linha, consequência de uma
sociedade cada vez mais mecanizada e urbana. Na verdade, tecnologia é qualquer
coisa desenvolvida em benefício de nosso bem-estar. E não há melhor bem-estar
do que ter uma alimentação saudável, livre de agrotóxicos, natural. Fortalecer
movimentos de trocas de sementes crioulas e preservação da cultura tradicional
é um ato político de resistência. Nessa missão, os Mebengôkré, assim como todos
os povos indígenas que enfrentam a luta diária pelo reconhecimento de sua
cultura, são grandes guerreiros na linha de frente de nosso exército nacional.
Texto: Ana Ferrareze
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